9 de ago. de 2011

Sobre a língua e os preconceitos sociais associados a ela

Alguns anos atrás, quando eu ainda fazia parte de verdade (hoje em dia não me sinto mais parte daquele departamento, apesar de, efetivamente, fazer parte dele) do "departamento de Jovens" (não sei qual é o nome de verdade do departamento) da igreja, fui a um retiro de carnaval (para quem não sabe o que é, é a forma como muitas igrejas conseguem fazer com que seus jovens evitem sair a "pular carnaval". Lá, eles passam os dias da "festa da carne" fazendo nada - sempre tem tempo definido pra justamente fazer nada u.u - e coisas relativas à bíblia e ao mundo cristão) num "lugar" (não sei como chama, se é parque, sítio ou o que) chamado "La Toma". Lá, durante os momentos de fazer nada, e como um amigo tinha levado um tabuleiro de xadrez (com imas e tudo mais) para jogar no tempo livre, me convidei para jogar consigo. Esse amigo, por acaso, era o Diego, um surdo. Na hora em que comecei a jogar, sem me ligar no porquê (e nem imaginar que esse porquê poderia ser importante), pensei coisas do tipo "aaa... vai ser fácil ganhar". O jogo foi acontecendo, eu cometi algumas mancadas, ele também (porque, afinal, acho que nem eu nem ele somos do tipo de gente que joga xadrez mais do que, quando muito, uma ou duas vezes por ano), e aos poucos eu fui percebendo que o tinha subestimado. Certamente que ele era bem melhor do que eu esperava. Mesmo assim, eu ganhei a partida =D.

O caso me foi marcante porque "por algum motivo" eu tinha achado que ele tinha de ser um mal jogador de xadrez. Imaginei, na época, que o motivo tivesse alguma relação com um possível preconceito "inconsciente" que eu tivesse contra ele e que, por acaso, naquele momento se fez aparecer. Aos poucos, acho, esse preconceito foi se "revelando", como vou explicar mais adiante...

Mudando dos paus pra canoa, o leitor obviamente concorda comigo quando digo que crianças têm um "seu jeito peculiar" de falar. Às vezes não concordam os gêneros direito, às vezes usam o pronome errado, às vezes não concordam os números direito (se bem que, convenhamos, nem a gente concorda), etc. No meu terceiro semestre na UFRGS, quando estava fazendo a cadeira de "Arq2" (Organização e Arquitetura de Computadores 2), tive um colega que, ao falar, às vezes, me lembrava uma criança. Ele era africano, de um país onde não se fala nativamente o português, e, apesar de já falar até que bem bem o português, ele ainda tinha algumas dificuldades, às vezes, para construir as frases em "tempo real". Ele tinha outra característica importante: perguntava SEMPRE. Era provavelmente o aluno que mais fazia perguntas na aula (ao menos naquela aula, onde praticamente ninguém falava nada u.u).

Logo no início do semestre, quando o seu "perguntar SEMPRE" passou a chamar a atenção (é que, realmente, ele perguntava affuuuu), fiquei com uma impressão ruim. Não sei por que motivo, mas achava que ele tinha alguma dificuldade, alguma problema que talvez tornasse as aulas mais difíceis pra ele. Talvez até fosse algum problema "da cabeça", sei lá. Bobagem! Era o meu preconceito falando mais alto denovo. Quando comecei a pensar que ele talvez falasse mais línguas que eu (o que não é tão difícil assim, mas, enfim), que tinha saído do seu país e vindo pra um lugar totalmente novo, com outra cultura, e, assim, enfim, tinha provavelmente já experienciado muito mais coisas do que eu sequer poderia imaginar à época, percebi o meu erro.

Esses tempos, no dojo de programação, apareceu um dos intercambistas da Alemanha pra participar. Como falava pouco e seu nome era "normal" (acho que era Raphael), eu nem percebi que era alemão. Em vez disso, estava já ficando com a seguinte impressão: "burro" o cara não é, afinal, ele tava na UFRGS e demonstrava conhecer já algumas linguagens; mas definitivamente algum problema social o cara tem. O problema social era a língua u.u. Quando percebi que o cara era alemão (o cara fala português tri bem já pra quem está desde março, acho, aqui), me liguei que o meu preconceito estava tentando gritar denovo.

Mas que preconceito é esse de que eu tanto falo? Aos poucos, com o convívio com os surdos e com pessoas aleatórias de outros lugares que passam pela minha vida, tenho percebido que, quando uma pessoa não domina bem a língua "do lugar", é fácil imaginarmos que ela também não domine bem outras "faculdades mentais", digamos assim. Pondo de uma outra forma, a gente (ou, ao menos eu, mas, chegarei lá, chegarei lá) tende a esperar pouco, i.e., subestimar, em geral, as pessoas, quando elas não dominam a língua "que esperamos que ela domine".

Um professor de português do cursinho (o Marcelo, ou Mamute, como o chamavam), em 2007, disse mais ou menos a mesma coisa. Lembro que na época ele defendeu sobre como é comum a gente julgar uma pessoa pelo modo como ela fala e como é fácil a gente subestimar a capacidade de uma pessoa só porque às vezes ela tem dificuldades de comunicação.

Também, o Eric Raymond, um dos caras fodões da cultura de código aberto, escreveu no seu "How to Become A Hacker" (esses dias fui ao site dele, como quem não quer nada, e, por acaso, encontrei esse texto. Só pra saber o que ele dizia, me parei a ler. Gostei =D), o seguinte:

"Being a native English-speaker does not guarantee that you have language skills good enough to function as a hacker. If your writing is semi-literate, ungrammatical, and riddled with misspellings, many hackers (including myself) will tend to ignore you. While sloppy writing does not invariably mean sloppy thinking, we've generally found the correlation to be strong — and we have no use for sloppy thinkers. If you can't yet write competently, learn to."

(para o caso de alguém não entender, vou traduzir livremente - vai ficar horrível, mas vamos lá):

"Ser um falante nativo de inglês não garante que você seja bom na língua o suficiente para ser um hacker. Se sua escrita é semi-literal, não gramatical, e enigmática em função de erros de ortografia, muitos hackers (incluindo eu) tenderão a ignorá-lo. Enquanto escrita desleixada não invariavelmente significa pensamento desleixado, em geral percebemos que a relação é forte - e não vemos utilidade alguma para pensamento desleixado. Se você ainda não consegue escrever competentemente, aprenda."

O leitor vai me dizer "tá... mas isso aí tem a ver com a escrita, e não com a fala". Mesmo assim, na minha opinião, o caso é o mesmo: o problema está principalmente na falta de domínio sobre a língua, eu diria. Infelizmente, como a forma de comunicação nesse caso é escrita, o julgamento fica ainda mais prejudicado, na minha opinião.

Finalmente, me uso como exemplo: frequentemente, quando em meio a pessoas que eu já conheço e com quem me dou bem, me demonstro [até que] com facilidade de comunicação (ou ao menos mais ou menos isso u.u), e tenho a sensação de que as pessoas não têm impressões ruins quanto às minhas capacidades mentais. Por outro lado, às vezes, quando em situações que exigem um pouco mais de personalidade (ao falar em público, apresentar trabalho, perguntar sobre preços, condições, e outras coisas em alguma loja ou estabelecimento comercial em geral), eu me demonstro uma negação social, e acabo me fazendo parecer um doente (dá pra perceber pela cara da pessoa que me atende na loja quando acontece, e eu ainda estou tentando desenvolver uma "defesa" contra isso u.u). Conheço várias pessoas aqui em Guaíba que, na minha opinião, são parecidas comigo, nesse aspecto. Conversar com elas durante 5min deve dar uma impressão horrorosa; conversar durante 30min deve dar uma impressão ótima.

Era isso...

R$

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