Hoje quero falar de um conceito que me deixou muito interessado enquanto eu estudava sobre os "trabalhos relacionados" do meu TCC: o conceito de fórmula.
Quem o definiu foi um tal de Otto Jespersen, num livro que me pareceu ser bem popular, já que, desde a sua primeira publicação em 1924, foi republicado várias vezes: The Philosophy of Language. No capítulo inicial, "Living Grammar", ele comenta sobre um conjunto de assuntos "abertos" da língua, como como palavras homônimas podem significar coisas distintas, como palavras com o mesmo som podem ser escritas de formas completamente diferentes, e como tem coisas na língua que simplesmente "são", ou seja, que não seguem regra alguma. A essas últimas, ele dá o nome de fórmula. Com suas palavras:
A formula may be a whole sentence or a group of words, or it may be one word, or it may be only part of a word, -- that is not important, but it must always be something which to the actual speech-instinct is a unit which cannot be further analyzed or decomposed in the way a free combination can.
Traduzindo livremente: Uma fórmula pode ser uma sentença ou um grupo de palavras, ou pode ser uma palavra, ou pode ser somente parte de uma palavra, -- isso não é importante, mas deve ser sempre algo que para o real discurso-instinto é uma unidade que não pode ainda ser analizada ou decomposta da forma como uma combinação livre pode.
O que me é interessante sobre esse assunto é que, para ele, ela não se limita à sintaxe, mas engloba também a fonética. Um exemplo que ele dá são as palavras com sufixo able, que, no surgimento desse sufixo, tendiam a ser "pré-proparoxítonas", como em 'despicable [o apóstrofo indica a sílaba acentuada], 'comparable, 'lamentable e 'preferable. Por acaso, algumas dessas acentuações acabavam caindo justamente na mesma sílaba da acentuação do verbo correspondente:
con'sider --> con'siderable
Com o tempo, a regra "mudou", e cada vez mais os falantes nativos passaram a pôr a acentuação na mesma sílaba onde o verbo é acentuado. Assim,
'acceptable --> ac'ceptable (ac'cept)
'respectable --> re'spectable (re'spect)
, e assim por diante [aliás... pra mim, sílaba em inglês é um negócio que só nativo entende u.u]. Eu quero deixar claro que esse é um exemplo em que a regra pra formação de palavras novas (o que ele chama de "free formations") mudou.
Ter visto esse exemplo me fez pensar num conjunto de verbos em português que, se houve qualquer free formation que levou à sua construção no passado, hoje ela não existe mais -- e só nos sobrou a fórmula. São verbos que seguem a estrutura:
início + a + consoante + segunda_conjugação
que, [ir]regularmente, mudam de raiz no seu meio. Por exemplo:
haver --> eu houve
caber --> eu coube
trazer --> eu trouxe
saber --> eu soube
Apesar do "o" na primeira pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo, eu sempre disse "eu cube". Até pouco tempo atrás, não entendia daonde poderia ter saído isso; mas claramente a regra também se aplica ao verbo saber. Na minha cabeça, a conjugação é:
Eu sube
Tu soubeste
Ele soube
Faço o mesmo com o verbo trazer -- e é daí que sai o famigerado trusce [escolhei a grafia -- eu sempre escrevi assim], por causa dos quais as coleguinhas pseudo-intelectualizadas da escola se fartavam de xingar os outros de burros u.u [eu sempre direi trusce]. Pra mim é "claro" (evidente) que eu extraio essa estrutura de forma "pré-fabricada" da minha cabeça. Eu não aplico qualquer análise: eu trusce pra mim é tão certo (e padrão) quanto eu tive ou eu pus [outras conjugações "sem sentido", mas aceitas].
(Anyways... uma coisa a dizer é que o verbo "haver" já caiu em desuso (ou virou preposição) -- e só aparece quando queremos falar de forma mega-cuidada)
Outro exemplo pra mim super interessante de algo que é definitivamente uma "fórmula" são muitos verbos que seguem o padrão
início + e + consoante + terceira_conjugação
início + o + consoante + terceira_conjugação
que [a esmagadora maioria -- ou ao menos os mais comuns] troca o e/o por i/u em algumas conjugações:
ferir --> eu firo | dormir --> eu durmo |
sentir --> eu sinto | demolir --> eu demulo |
mentir --> eu minto | engolir --> eu engulo |
seguir --> eu sigo | cobrir --> eu cubro |
progredir --> eu progrido | tossir --> eu tusso |
refletir --> eu reflito |
Pra mim eles são um bom exemplo de fórmula porque me parece que outros verbos menos freqüentes não soam muito bem quanto sofrendo o mesmo tipo de flexão:
gerir --> eu giro
emergir --> eu emirjo
abolir --> eu abulo
polir --> eu pulo
extorquir --> eu exturco
remir --> eu rimo
acodir --> eu acudo
Mais do que isso, ainda tem uns verbos que passam por cima de tudo [fórmula?] e só permitem mudanças depois do radical:
sorrir --> eu sorrio (presente) --> eu sorri (passado)
florir --> eu florio (presente) --> eu flori (passado) [só eu digo isso?]
rir --> eu rio (presente) --> eu ri (passado)
[aliás... eu digo que as plantas estão floridas -- de onde eu tiro o verbo florir --; mas aceitaria naturalmente também as variações florescidas (florescer) e floreadas (florear)]
Um último conjunto de verbos que é claramente recuperado da nossa memória de forma pré-fabricada são aqueles que constróem a segunda e terceira pessoas do singular do presente do indicativo com "ói[s]":
moer --> ele mói
doer --> ele/isso dói
construir --> ele constrói
destruir --> ele destrói
[coloque-se o verbo poer --> põe nesse grupo, diga-se de passagem. Fico pensando: se esses verbos tivessem evoluído junto com o põe, talvez tivéssemos um conjunto de verbos da quarta conjugação completamente vivo e produtivo]
Bom... eu tenho mais um monte (um monte MESMO) de anotações sobre verbos irregulares presentes na nossa língua de que a gente simplesmente não se dá conta. Essas expressões não-livres me são interessantes porque freqüentemente não aparecem sozinhas: cada vez mais me convenço do quão raro é que uma irregularidade aconteça com somente uma palavra. Fico pensando em quão legal seria "regularizar" essas exceções... ou ainda torná-las produtivas de volta.
Enfim... eu preciso parar de procrastinar though... já perdi tempo demais por aqui hoje.
R$
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Edit: no início eu pensei que estivesse escrevendo bobagem, e no fim acabei removendo uma parte da postagem original, a qual, agora, depois de um pouco melhor pensar, resolvi, merece voltar:
Existe um conjunto de verbos que segue o caminho oposto ao conjunto início + o + consoante + terceira_conjugação. São verbos na estrutura
início + u + consoante + terceira_conjugação
que, na segunda e terceira pessoas do singular trocam o u por o. É como se eles antigamente fossem com "o" (é que eles seguem a mesma regra que "tossir", por exemplo) ou algo assim xP [aliás, minha suposição é de que eles "formem conjunto" com os que terminam em ói ali em cima -- a idéia é a mesma, só que lá em cima não tinha uma consoante pra "enrigecer" o som como aqui]. Assim, enquanto alguns verbos nesse formato não trocam vogal alguma
punir --> ele pune
curtir --> ele curte
grunir --> ele grune
ebulir --> ele ebule [se diz isso?]
, alguns outros realizam essa estranha troca:
zumbir --> ele zombe
fugir --> ele foge
cuspir --> ele cospe
sumir --> ele some
acudir --> ele acode
A minha conclusão é que, apesar de os verbos da terceira conjugação serem bem "chatos" de conjugar -- ou seja, seguirem regras muito frouxas --, errar aqui não torna o verbo difícil de entender (para o deleite dos não-nativos xP -- apesar de que, me parece, é justamente aqui que eles se "denunciam" quando falando português).
R$