2 de set. de 2012

Pobre Português

Desde o fim de Julho, quando fui a Bruxelas, tenho ficado enculcado com uma coisa sobre a nossa língua: o quão difícil ela é.

Parece engraçado falar isso. É óbvio que o leitor sabe o quão cheia de diferentes tempos verbais, conjugações, regras de acentuação e regência específicas ela é. É claro que o leitor já se viu com dificuldades pra aprender a conjugar os verbos na segunda pessoa do plural e é claro que já teve dúvidas sobre qual palavra deveria usar em algum ponto de uma de suas frases. A nossa língua é complexa, difícil, complicada! Ela faz o falante pensar!
Falei de Iracema e lembrei dessa capa.
Ô livrinho bem ruim esse aqui
Dava vontade de chorar de tão
desconfortável de ler T__T



O usuário comum frequentemente acaba cometendo erros quanto à "norma padrão da língua" mesmo em momentos em que gostaria de escrever corretamente. Crase, próclise, mesóclise... são tantas as "fontes" de erros que, se eu inicialmente planejava enumerá-las, acabei por desistir.

Agora posso chegar ao ponto que realmente me deixa pensante: como a nossa língua (e, na verdade, não somente a nossa, mas muitas outras) conseguiu, através dos tempos, adquirir tantas regras e especificidades, se em geral o que acontece naturalmente é justamente o oposto, a saber, a simplificação da língua? Como foi que em tempos onde a educação era privilégio de poucos a língua conseguiu evoluir "para melhor", se nos nossos tempos, nos quais a educação está ao alcance de muitos, a moda é simplificar? Como, minha gente?

Num primeiro momento, pensei que talvez fosse justamente a falta de educação que contribuísse para a "melhora" da língua: como somente uma elite intelectual era responsável pela definição do certo e do errado, os outros 99% da população que se danassem. Mas o problema é: esses outros 99% também utilizavam a mesma língua para se comunicar! Como seria possível que uma pequena elite definisse o modo como TODOS se comunicariam??

Ao longo do tempo, pensei e matutei, e acho que agora talvez tenha uma resposta. Se é a verdade, não o digo: precisaria encontrar alguém que sobre isso estudara; mas que se assemelha à veracidade, creio que o leitor concordará que sim.

Se agora a coisa não mais é assim, até pouquíssimo tempo atrás a produção literária (e, basicamente, consequentemente, "cultural", do ponto de vista da nossa língua) era monopolizada pela elite intelectual de então. Os escritores eram os responsáveis por utilizar palavras complexas que coubessem em contextos extremamente específicos e que carregassem significados sobremaneira restritos. Eles construíam uma "nata" sobre a língua, a qual era endossada por gramáticos, críticos, e o diabo. Enquanto estudando literatura na escola, lembro de ouvir que o João Guimarães Rosa era um desses caras, conhecido por criar palavras à bangu (aqui, com crase, supondo que seja "à moda bangu")!

Uma das principais responsáveis por essa maldita
simplificação a que me refiro ¬¬
Eu já escrevi em outra postagem sobre o Machado de Assis o quanto me facinava ler, em seu Memórias Póstumas de Brás Cubas, palavras que ainda provavelmente nem traduzidas para o Português fossem, como "minuete" ou "japões". Também o José de Alencar foi acusado de "galicismo" (i.e., utilizar palavras do francês) pela crítica contemporânea ao usar a palavra "flanco" no seu Iracema -- eu lembro que a versão de Iracema que eu tinha vinha com uma "resposta de José de Alencar à crítica" no fim do livro.

Por baixo dessa camada superior, de onde estruturas sintáticas complexas emanavam, viria uma camada inferior, não-educada, de gente como a gente, que falava o português do jeito que aprendeu, de qualquer jeito. Eles seriam os responsáveis por "desregular" os verbos mais usados no dia-a-dia, como o verbo ser (que em qualquer língua que eu já tenho visto, é SEMPRE irregular), o verbo ter, o haver e tantos outros que por aí se vão. Aqui, o objetivo seria sempre simplificar, já que essa gente não tem interesse em usar a língua como arte, mas como protocolo de comunicação. Quanto mais fácil, melhor!

Como a educação não é uma função degrau, em que só existem os "educados" e os "não-educados", existiriam vários pontos de encontro no meio dessa bagunça, os quais trariam novas palavras para o miolo (estou tentando fazer um oposto à "nata" aqui) e, por outro lado, empurrariam novas regras simplificadoras para a nata. Através dos tempos, infelizmente, afundamo-nos em um problema: se por um lado a educação se tornou alcançável por uma parcela maior da população, a elite intelectual se esvaziou de seu senso de novidade e passou a simplificar a língua em vários aspectos. A "elite produtora de cultura" (se antes houvera -- ou, ao menos, eu citara -- somente os escritores, agora há rádio, TV, internet, e muito mais!), em vez de manter o seu nível superior, ignorando o miolo, permanecendo sempre à frente, criando novas estruturas, novas regras, e novas idéias à língua, arqueou-se fronte a ele, simplificando-se, profanando-se.

Nessa mistureba, nessa "média" entre a nata e a chinelagem, a elite passou a aceitar que talvez algumas funcionalidades fossem simplesmente desnecessárias. Passou a atorar, a aleijar, a desmantelar a língua. Na sua loucura, esqueceu-se das diferenças na formalidade entre o "você" e o "tu"; removeu o Pretérito Mais-que-Perfeito; eliminou a trema e o acento diferencial. A língua empobreceu. A "elite", que define o certo e o errado, politizou-se -- até o Ronaldinho, que não lê, dela ganhou prêmio.

(tem uma coisa que a minha suposta resposta não consegue comtemplar: a produção vinda do miolo! O miolo é responsável por uma quantidade IMENSA de expressões idiomáticas, como "com o pé atrás", "nas coxas", "João-sem-braço", "com o pé na cozinha", "já é ou já era", etc. Se a nata se esqueceu de cumprir com o seu papel, ao menos tenho de dizer que o miolo não tá indo tão mal)

Algumas dúvidas me consomem: empobrecemos, empobrecemos e empobrecemos. Será que chegaremos a um fundo-do-poço de onde, a partir de certo momento, voltaremos a enriquecer continuamente a nossa língua? Será que um dia resgataremos as perdas a que estamos nos submetendo?


(após escrever essa postagem, achei que talvez fosse legal mostrar algumas das perdas às quais me refiro. Então... enfim... num futuro relativamente próximo, acho que o leitor as verá)

R$

1 de set. de 2012

KL#7 -- Mestres

Disclaimer (cumé que se traduz isso?)

Antes de começar essa postagem, é necessário que ao leitor sejam esclarecidos dois importantes pontos:
  1. Essa postagem foi idealizada em um daqueles momentos em que qualquer coisa parece fazer todo sentido, a saber, no caso, em um momento de insônia. Uma vez, li na Super Interessante (ótima fonte de informação, em? lol) que quanto mais com sono estamos mais nos falta uma certa substância responsável pelo nosso senso de realidade, o que, por vezes, nos ajuda a pensar que algo completamente aleatório poderia naturalmente fazer todo o sentido. Se o é verdade, não sei dizer; mas que me parece aceitavelmente condizente com a realidade... ah, sim parece!
  2. O leitor assíduo deve já saber que nesse blog, em geral, evito mencionar nomes. Assim, apesar de essa postagem ser relativamente "direcionada" a algumas pessoas (não que eu realmente pretenda que ela seja lida pelas tais, mas, bem, o leitor entenderá), ela não dirá quem elas sejam. Com o intuito de identificá-las, me bastará fornecer algumas informações não críticas sobre ambas.

Postagem em si

Essa semana, ou, mais precisamente, na madrugada do dia 26, foi embora aquele que fazia as vezes de "meu orientador" aqui na universidade: um pós doutorando, responsável por controlar o número de horas durante as quais eu ficaria no lab, verificar o quão bom tem sido o meu progresso e definir quais seriam as tarefas (ou, na verdade, quem é que me daria tarefas) no próximo "intervalo" de tempo (o qual, em geral, durava uma semana).
Mestre Splinter

Porque eles tiveram uma má experiência no ano anterior (ou ao menos foi o que eu ouvi) com o brasileiro que aqui estava, ele no início demonstrou uma certa cobrança maior do que me era esperado. Com o tempo fui perceber que não era ele quem cobrava (minha impressão era de que ele tava meio que "cagando e andando", na real), mas o professor (que coordena o lab), que ainda comigo tinha um pé atrás.

Como essa foi a minha primeira real "experiência profissional" até então, e estando eu num lugar onde (ao menos eu esperava que) as relações sociais não deveriam se "confundir" com as relações profissionais (apesar de eu usar o MSN para me comunicar com o pessoal do lab), procurei sempre manter uma relativa e suficiente distância. Um exemplo: apesar de usar português para me comunicar (o que em geral leva a um ambiente um pouco mais descontraído), tendia a evitar palavrões.

Quase o mesmo ocorria com um doutorando do lab, também brasileiro. Como passei boa parte do meu tempo até agora fazendo um programa onde o responsável era ele, passei esse tempo me comunicando com ele, tentando sempre manter aquela distância típica da minha parte quando o assunto sobre o qual eu falo é sério. Por outro lado, como não tinha, na verdade, de responder diretamente a ele por tudo o que eu andasse fazendo no lab, com ele não me importava tanto em "profanar o ambiente de trabalho" com conversa fiada, se por qualquer motivo ela surgisse.
Mestre Yoda

Quando peguei catapora, em Junho, ambos se dispuseram a me ajudar em qualquer coisa que fosse necessária. Como bons brasileiros e conhecendo a possível desestabilidade psicológica que o estar longe de casa pode trazer (não que eles [ou eu] tenham[os] passado por isso, mas, lol, tem gente que até se mata), pediram que eu com eles entrasse em contato se tivesse qualquer problema. O leitor que já me conhece sabe que não gosto de pedir as coisas a outrem -- especialmente quando não tenho muita "afinidade" -- e que, portanto, uma probabilidade bem pequena de que eu realmente fizesse o que a mim pedido fora havia.

Com a saída do agora pós-doutor, ou, na verdade, com o aviso de que a sua saída se aproximava, alguns pensamentos vieram à minha mente. Mas... antes... mais detalhes:

Dos meus amigos com quem eu para cá pra Alemanha vim, alguns festeiros acabaram se dando muito bem com o meu "orientador" (usarei essa palavra sem aspas daqui pra frente pra denotar o pós-doutorando, já que, na real, era isso que ele era, no fim das contas): saíam e bebiam de vez em quando. Pra mim era legal: apesar de eu não me comunicar consigo (não bebo, não faço nenhuma loucura aleatória e nem gosto de festas -- não tinha muito sobre o que conversar), através dos meus colegas tinha como finalmente ter um feedback sobre o quão bem ía o meu trabalho aos olhos dos meus "superiores" no laboratório (já que a mim pouco ou nenhum retorno é dado, normalmente).

Senhor Miyagi

No fim de Julho, fomos eu, o professor do laboratório (o qual surpreendetemente fala bem mais português do que eu esperava), e os dois brasileiros a uma churrascaria que havia aberto aqui na cidade (churrascaria fodasticalhona! Saciei completamente a minha saudade de um bom churrasco!). Ao término da janta, percebi pela primeira vez que talvez essas pessoas -- com quem eu convivo tanto e a quem eu respondo frequentemente no laboratório -- também participavam da minha vida social! Não que eu não o soubesse já, mas foi algo que me fez pensar: diferentemente das situações de sempre, não havia resposta certa ou comportamento esperado. Eu não estava no ambiente de trabalho!

Bom... essa semana, como eu disse, foi embora o meu orientador. Virou professor, ou seja, exatamente aquilo que almejo, num futuro distante, alcançar. Tenho orgulho de ter passado por "seu caminho". Mesmo assim, não aprendi um décimo do que talvez através dele poderia ter aprendido. Respondi às suas orientações, atribuições de tarefas, e só. Não "fiz parte de sua vida", i.e., não participei de sua vida social a ponto de talvez ser lembrado num futuro distante. E a recíproca não é verdadeira.

Essa postagem, assim, tem o objetivo de expressar, de alguma forma, o quão importantes são esses dois brasileiros com os quais convivo (e convivi) tanto e através dos quais aprendo (e aprendi) muito. Ao longo da postagem, o leitor passou por imagens de seres que, nos seus universos, foram considerados mestres pelos "personagens principais" de suas "realidades". Meus superiores foram (e têm sido), assim, meus mestres através desse ano inteiro nessa terra distante. Agradeço-os...

R$