Parece engraçado falar isso. É óbvio que o leitor sabe o quão cheia de diferentes tempos verbais, conjugações, regras de acentuação e regência específicas ela é. É claro que o leitor já se viu com dificuldades pra aprender a conjugar os verbos na segunda pessoa do plural e é claro que já teve dúvidas sobre qual palavra deveria usar em algum ponto de uma de suas frases. A nossa língua é complexa, difícil, complicada! Ela faz o falante pensar!
Falei de Iracema e lembrei dessa capa. Ô livrinho bem ruim esse aqui Dava vontade de chorar de tão desconfortável de ler T__T |
O usuário comum frequentemente acaba cometendo erros quanto à "norma padrão da língua" mesmo em momentos em que gostaria de escrever corretamente. Crase, próclise, mesóclise... são tantas as "fontes" de erros que, se eu inicialmente planejava enumerá-las, acabei por desistir.
Agora posso chegar ao ponto que realmente me deixa pensante: como a nossa língua (e, na verdade, não somente a nossa, mas muitas outras) conseguiu, através dos tempos, adquirir tantas regras e especificidades, se em geral o que acontece naturalmente é justamente o oposto, a saber, a simplificação da língua? Como foi que em tempos onde a educação era privilégio de poucos a língua conseguiu evoluir "para melhor", se nos nossos tempos, nos quais a educação está ao alcance de muitos, a moda é simplificar? Como, minha gente?
Num primeiro momento, pensei que talvez fosse justamente a falta de educação que contribuísse para a "melhora" da língua: como somente uma elite intelectual era responsável pela definição do certo e do errado, os outros 99% da população que se danassem. Mas o problema é: esses outros 99% também utilizavam a mesma língua para se comunicar! Como seria possível que uma pequena elite definisse o modo como TODOS se comunicariam??
Ao longo do tempo, pensei e matutei, e acho que agora talvez tenha uma resposta. Se é a verdade, não o digo: precisaria encontrar alguém que sobre isso estudara; mas que se assemelha à veracidade, creio que o leitor concordará que sim.
Se agora a coisa não mais é assim, até pouquíssimo tempo atrás a produção literária (e, basicamente, consequentemente, "cultural", do ponto de vista da nossa língua) era monopolizada pela elite intelectual de então. Os escritores eram os responsáveis por utilizar palavras complexas que coubessem em contextos extremamente específicos e que carregassem significados sobremaneira restritos. Eles construíam uma "nata" sobre a língua, a qual era endossada por gramáticos, críticos, e o diabo. Enquanto estudando literatura na escola, lembro de ouvir que o João Guimarães Rosa era um desses caras, conhecido por criar palavras à bangu (aqui, com crase, supondo que seja "à moda bangu")!
Uma das principais responsáveis por essa maldita simplificação a que me refiro |
Por baixo dessa camada superior, de onde estruturas sintáticas complexas emanavam, viria uma camada inferior, não-educada, de gente como a gente, que falava o português do jeito que aprendeu, de qualquer jeito. Eles seriam os responsáveis por "desregular" os verbos mais usados no dia-a-dia, como o verbo ser (que em qualquer língua que eu já tenho visto, é SEMPRE irregular), o verbo ter, o haver e tantos outros que por aí se vão. Aqui, o objetivo seria sempre simplificar, já que essa gente não tem interesse em usar a língua como arte, mas como protocolo de comunicação. Quanto mais fácil, melhor!
Como a educação não é uma função degrau, em que só existem os "educados" e os "não-educados", existiriam vários pontos de encontro no meio dessa bagunça, os quais trariam novas palavras para o miolo (estou tentando fazer um oposto à "nata" aqui) e, por outro lado, empurrariam novas regras simplificadoras para a nata. Através dos tempos, infelizmente, afundamo-nos em um problema: se por um lado a educação se tornou alcançável por uma parcela maior da população, a elite intelectual se esvaziou de seu senso de novidade e passou a simplificar a língua em vários aspectos. A "elite produtora de cultura" (se antes houvera -- ou, ao menos, eu citara -- somente os escritores, agora há rádio, TV, internet, e muito mais!), em vez de manter o seu nível superior, ignorando o miolo, permanecendo sempre à frente, criando novas estruturas, novas regras, e novas idéias à língua, arqueou-se fronte a ele, simplificando-se, profanando-se.
Nessa mistureba, nessa "média" entre a nata e a chinelagem, a elite passou a aceitar que talvez algumas funcionalidades fossem simplesmente desnecessárias. Passou a atorar, a aleijar, a desmantelar a língua. Na sua loucura, esqueceu-se das diferenças na formalidade entre o "você" e o "tu"; removeu o Pretérito Mais-que-Perfeito; eliminou a trema e o acento diferencial. A língua empobreceu. A "elite", que define o certo e o errado, politizou-se -- até o Ronaldinho, que não lê, dela ganhou prêmio.
(tem uma coisa que a minha suposta resposta não consegue comtemplar: a produção vinda do miolo! O miolo é responsável por uma quantidade IMENSA de expressões idiomáticas, como "com o pé atrás", "nas coxas", "João-sem-braço", "com o pé na cozinha", "já é ou já era", etc. Se a nata se esqueceu de cumprir com o seu papel, ao menos tenho de dizer que o miolo não tá indo tão mal)
Algumas dúvidas me consomem: empobrecemos, empobrecemos e empobrecemos. Será que chegaremos a um fundo-do-poço de onde, a partir de certo momento, voltaremos a enriquecer continuamente a nossa língua? Será que um dia resgataremos as perdas a que estamos nos submetendo?
(após escrever essa postagem, achei que talvez fosse legal mostrar algumas das perdas às quais me refiro. Então... enfim... num futuro relativamente próximo, acho que o leitor as verá)
R$
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