[Mudando dos paus pra canoa...]
Esse natal, duas primas com quem eu me dou muito bem passaram lá em casa. Uma delas mora em Salvador há já uns 10 anos (mais?), e a outra mora em Floripa há pouco menos e agora voltou pra cá. Um primo que morou 25 anos no Espírito Santo também estava por casa, e pra completar um amigo de Recife passou o natal por lá. Conversa vai e conversa vem, eu frequentemente me pegava divagando da conversa e notando quando o seu sotaque ficava forçado ou quando usavam de forma bizarra (para o meu português) algumas palavras.
Essas interações me motivaram a fazer uma postagem sobre alguns brasileirismos que já me chamaram a atenção demais para eu não escrever em algum lugar.
Eu randomly achei essa tirinha uns dias atrás e ela agora deu MUITO bom |
Disclaimer
Percebei que todas as "não-gramaticalidades" listadas a seguir não estão erradas. Errada deve estar a gramática, por não tratar dessas especificidades. Se essas "não-gramaticalidades" permitem (e até mesmo facilitam) a comunicação, então elas devem ser tratadas como melhorias, como patches, como plug-ins à gramática, talvez somente não aceitas em contextos mais formais.
Digo isso para que não me surja ninguém a dizer coisas along the lines of "como a gente fala errado" ou "como gente de [lugar X] fala errado", etc...
Em --> Ne
Essa parece ser típica dos mineiros e capixabas. O primo a que me referi, que morou 25 anos no ES, já me havia comentado como o povo de lá dizia ne mim em vez de em mim.
Quando comecei a conviver quase diariamente com as pessoas a quem referi no primeiro parágrafo, logo notei o mesmo uso por parte de um mineiro. Aliás, vereis que boa parte da responsabilidade pela criação dessa lista de "brasileirismos" é culpa dele xP
Bom... continuando com o que interessa, essa substituição me fez notar algo legal. Em português, temos dois sons para a letra m (acho que o nome disso é alofonia, certo?). Quando acompanhado de vogal, o m tem o som de m normal (ou seja, /m/). Quando em fim de sílaba, o m, que antes era labial, passa a ser nasal-palatal-aproximante, o que é denotado no IPA (o alfabeto fonético internacional) pelo símbolo /ȷ̃/ (notai a sua pronúncia em palavras como amém, alguém, porém, ..., e como ela se assemelha à pronúncia do n em palavras como dengue, capenga, incas, enrolar).
Aí eu fiquei me perguntando: qual a diferença entre em algum e nhalgum, foneticamente, para nós brasileiros? E me convenci de que a resposta simplesmente é "nenhuma!". E aí eu notei o quanto nhalgum se assemelha de nalgum, e fiquei me perguntando se não teria sido daí que surgiu essa regra totalmente sem sentido (até então) de quem em + o = no (e variações).
Eu não tenho a resposta para isso ainda, mas acho que faz um mínimo de sentido xP
Pra mim + infinitivo
Tá tá... eu sei que o título é "brasileirismos", mas a utilização por parte de outrem (gente de fora, que vem pra cá e incorpora nosso jeito de falar) dessa "não-gramaticalidade" me obrigou a pôr esse item, típico de gaúchos, nessa postagem. A gente vive aprendendo, e reouvindo, e redizendo, e reexplicando pras pessoas que "mim não conjuga verbo" e aí dando exemplos de como fiz esse bolo pra ti comer não significa fiz esse bolo pra tu comeres, mas não adianta.
Em casos capciosos como esse aí de cima, a prosódia é quem nos diz tudo 6__6 |
Sobre o "Pila"
Fiquei sabendo que pila (dinheiro) se diz em tudo que é lugar. Enquanto, por outro lado, pila indica pouco dinheiro, uma recifense me disse que usaria pila para falar de algo que custou caro O_o
No mais, ela e um outro recifense disseram que pila era algo que se entendia mas que pouco se falava. Fiquei pensando que talvez fosse como cafageste e canalha, que, apesar de perfeitamente audíveis como xingamentos (acho que por causa da TV), nunca sairiam da boca de um gaúcho.
Agora me veio a curiosidade sobre se pila lá fora se usa no plural. No sul as pessoas tendem a marcar o plural em somente uma palavra [ou seja, não há concordância de número, quase] e eu fiquei me perguntando se esse efeito também ocorre nas outras regiões. Percebo que fazemos o mesmo com barão (R$1000, pra mim, pelo menos) e conto (de fato, acho que nunca ouvi barão no plural).
O uso da palavra Guri
Eu já disse que tenho uma prima que mora em Salvador. Lá, naturalmente, é de se esperar que não se diga guri. Eu não gosto de pensar no Brasil através de isoglosses, mas tenderia a pensar que a partir de uma certa região do país a palavra guri receba uma conotação negativa (em Floripa já é negativo, por exemplo) e dali pra frente a coisa só piora.
Eu lembro que o Wolverine, no desenho do X-Men antigo (aquele com a abertura Age of Empires-like -- comparai com isso), chamava a Jean Grey de guria e eu achava estranho isso.
Nevertheless... a minha prima disse que descobriu um uso de guri que os baianos aceitam perfeitamente: quando dentro da expressão quando eu era guri. Diz ela que o baiano com quem ela conversava achou até um absurdo que ela questionasse o seu uso de guri no meio dessa expressão, como se nem houvesse outro modo de dizer a mesma coisa. Eu achei legal que essa é certamente mais uma dessas expressões formuláicas que não são analizadas por inteiro e que usamos sem nem pensar em como elas pouco ou nenhum sentido fazem, como quem me dera (onde o dera é um resquício de pretérito mais que perfeito na nossa fala) ou assim que [X ocorrer] (qual o sentido de assim que aqui? O_o].
Enfraquecimentos e Assimilações
Na postagem anterior, eu comentei que andara lendo sobre algumas mudanças sonoras e listei quatro tipos por que eu mais me havia interessado no momento. O motivo do meu interesse pelo assunto e por aqueles tipos em especial era que eu andei notando (tendo a impressão, pelo menos -- mais uma vez por culpa de uns "mineirismos") que algumas mudanças sonoras estão em "passos diferentes" dependendo da região.
Quatro expressões foram as causadoras dessa minha impressão: doce de leite, de jeito nenhum, desse jeito e monte de coisa. Eu tentei criar uma tabela com o modo como eu espero que elas sejam pronunciadas abaixo. Em casos em que o d está acompanhado de um e ou i, ele normalmente muda a sua pronúncia (o que também ocorre com o t). Para representar essa alofonia, eu uso os grupos dg e tch. Eu também tentei criar uma transcrição pelo IPA, mas sou n00b com o IPA e nem sei se o usei certo xP Eu represento o fim em "nenhum" como um ɐ̃, mas não tenho certeza de o quão certo está isso. Todas essas pronúncias são o que eu espero quando essas frases são pronunciadas rapidamente (como dentro de uma frase proferida por uma pessoa relativamente brava).
-- | RS | RS -- IPA | MG | MG -- IPA |
Monte de coisa | Montchcoiss ou Montchcoia (eu) |
Mont͡ʃi'kojs ou Mont͡ʃi'koja |
Mondgicoi | Mond͡ʒi'koj |
Doce de leite | Doss dgi leitch | Dos d͡ʒi 'lejt͡ʃ | Dojdgi lei | Doʒd͡ʒi 'lej: |
Desse jeito | Dess jeit | Des 'ʒeit | Dejei | De'ʒej |
De jeito nenhum | Dgei tnehum | Dʒej tne'ɐ̃ | Dgeinihum | Dʒejne'ɐ̃ |
O que eu acho legal notar é que, enquanto em MG os ts e os ds já sofreram enfraquecimento affuuuu, a fala do pessoal gaúcho ainda é mais conservadora. Detalhe é que esses enfraquecimentos mineiros em geral não causam dificuldade no entendimento (na maior parte das vezes xP), e, sinceramente, eu só espero que eles não continuem evoluindo muito mais por causa da interação deles com o resto do país (que começaria a se tornar problemática a partir de um certo nível).
Mesmo assim, me é interessante que paradoxalmente eu fale (pra não dizer que "as pessoas falam isso no RS") coisas como ó aí ó (com o sentido de olha para isso olha), poblema ou pa/po (no lugar de pra e pro) -- isso pra não citar o tó (toma), que entrou artificialmente no meu vocabulário.
M de Monchito [...], T de Monchito, e O de Oscar |
Falando em sons, eu achei que seria legal comentar sobre alguns alófonos. Os comuns todo mundo já conhece: quem não gosta de folgar no r de roceiro de uns paulistas, ou no r "trinado" (que eu queria muito ter) de uns interioranos? E os ds e ts de uns nordestinos (pra ser justo, são só algumas regiões), que não mudam de pronúncia quando acompanhados de sons de i?
Uma coisa que eu ando notando já há uns tempos é como o ê e o i são mais ou menos alófonos também aqui no RS. Expressões como desculpa aí ou e aí? são facilmente deturpadas para desculpa aê (e daí desculpaê) e iaê? (ou eaê?). Eu to pra dizer que isso só ocorre em fins de frase, mas vislubraria o dia em que alguém dissesse quase caê ali hoje (com ares de maloqueiro, que é bem o tipo de gente que eu espero que conduza essa mudança xP). Talvez isso seja bem coisa de gaúcho mesmo: a gente vive querendo mudar sons de vogais, como uns lá que viram lããã e depois uns lææææ.
Precisa + verbo
Um tempo atrás, quando eu ainda via meu pai com mais frequência, eu assisti a uma propaganda do canal Futura em sua casa onde um cara saía às ruas perguntando qual era o certo: precisar de fazer ou precisar fazer?.
A resposta é obviamente a segunda opção: o verbo precisar, quando catenativo, não espera a preposição de. Eu sempre achei que isso fosse conhecimento comum, e algo que as pessoas normalmente não "errassem" (não que isso seja errado). Mas lembro que ao ver a propaganda comecei a supor que talvez isso não fosse verdade.
O convívio com o mineiro já referido (bá... essa é a última vez que pego no pé dele... sério xP) me mostrou que definitivamente não era verdade: ele quase sempre diz precisar + de+ verbo no infinitivo.
Lembro que uma vez eu vi uma mulher que cometia esse erro no Casos de Família do SBT (a que minha vó assistia frequentemente =/ ), e lembro que ela foi a mesma que me fez perceber que tem paulistas (creio que no interior) que não usam subjuntivo (e falam coisas como ela queria que ele se mudava pra lá O_o). O Geraldo Alckmin também me chamava a atenção errando uma vez lá que outra esses precisa + de (procurei um video em que ele o fizesse mas fiquei sem saco e logo desisti) -- aa, bom, mas se até o Alckmin erra isso, então deve não ser grandes problemas, né?
Ques coisa... e os s gaúchos
Gaúcho tem mania de não terminar palavras em s. Quando conjugamos verbos na primeira pessoa do plural, os s logo vão embora. Quem é que diz vamos, quando vamo já é suficiente? E comemo, andamo, ...
Mais do que isso, temos o costume de não conjugar a segunda pessoa do singular. Enquanto outros estados, quando o fazem, frequentemente comem um t do pretérito perfeito (pernambucanos, catarinenses, paraenses e mesmo os riograndinos daqui do RS dizem fizesse no lugar de fizeste [um típico caso de elisão xP]), nós simplesmente nos rendemos à terceira pessoa, e mais uma vez eliminamos os s de tudo: tu come, tu anda, ...
Nessa perda de s de tudo que é lugar, perdemos nossos plurais também: quem é que precisa dizer os litros, os tomates, quando os litro e os tomate são suficientes? Os s são marcados somente nos artigos; mas o que acontece quando omitimos os artigos? A minha crença é que eu faça o mesmo que quem não usa pronome relativo: coloque um pronome depois, onde eu possa marcar o plural (ex.: tomates, eles são bons pra saúde). Mas acho que tem gente que ainda marca o plural no próprio nome.
Mais do que isso, temos cada vez mais eliminado a necessidade do nós e usado a gente no lugar. Eu já notei que uso a mesma estratégia do parágrafo anterior pra evitar a conjugação na primeira pessoa do plural. Assim, em vez de dizer Eu e a minha mãe fomos ao mercado ontem, eu digo Eu e a minha mãe, a gente foi ao mercado ontem [aliás, isso me soa meio francês u.u].
Tá... então agora surgiu uma regra pra nós de que plurais são marcados somente em artigos e pronomes, certo? Nessa regra, um pronome acabou passando a concordar em número: o que. Se antes se dizia eu não sei de que tomates tu tá falando, agora a regra define (algo que eu não digo naturalmente, mas faço todo um esforço pra usar -- porque acho legal) que se diga eu não sei de ques tomate tu tá falando. Isso fica mega evidente quando alguém quer fazer uma reclamação contra algo plural. Em vez de dizer, por exemplo, Potz... mas que crianças do inferno, muitos dizem Potz... mas ques criança do inferno [notai o "Potz" ali, mais um caso de gaúchos mudando a pronúncia de uma vogal u.u].
O vocativo
Notei esses dias que o português marca sim o vocativo -- pelo menos na fala. Frequentemente, quando eu quero chamar a atenção de alguém, eu não digo, como na bíblia, coisas como Oh homens de pouca fé (um Oh aberto, como o o em pobre); mas se eu estivesse querendo interpelar alguém, diria naturalmente "Ô pessoa" (com o O fechado).
Apesar de eu nunca ter notado, isso ocorre o tempo todo. Fiquei me perguntando se isso ocorreria somente no Brasil ou se ocorreria também em Portugal. Digo isso porque a Wikipedia em inglês diz somente:
Catalan and Portuguese use the personal article, but drop it in front of vocative forms.O que pra mim não significa nada (eu não dropo nada quando quero chamar alguém O_o). Já a Wikipedia em português diz isso:
Entre as línguas românicas o vocativo foi conservado apenas no romeno.O que não é verdade, na real, dado que, se a nossa marcação de vocativo não é morfológica, pelo menos nós temos uma marcação.
Infelizmente, essa marcação só ocorre às vezes, e os exemplos comuns de vocativo normalmente não contemplam o Ô ali de cima =/ Um exemplo típico pra mim é algo como "Eles trazem o almoço aqui, João". Me é engraçado que uma das frases mais proferidas por crianças (e alguns adultos xP) normalmente já marquem o vocativo tranquilamente: Ô mãe!
Bônus
Eu tenho sérias dificuldades pra achar verbos frasais em português. Por acaso, esses dias, notei a existência de vários. Escrevi aqui -- e tomara que alguém consiga me dizer mais alguns:
ir atrás, ir embora, deixar para trás, jogar pra escanteio, deixar de canto, deixar de fora, deixar de lado, jogar fora, entregar de volta
Eu não sei direitinho ainda como "analisá-los", mas os deixo aqui pra um futuro distante, quando eu talvez queira pensar nisso denovo.
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