Sufixo Incoativo
Ontem estava indo comer um xis com um amigo que não via há muito e, no caminho, ía pensando sobre o verbo adolescere em latim. Há algum tempo (sozinho, do nada) eu tinha notado/descoberto que adultus era o seu particípio passado e, porque havia lembrado sobre o ocorrido, fiquei me perguntando se o ad do início não seria decorrente da preposição ad. O motivo é que estava comparando com a preposição ab, que se torna a quando precedida de consoante (algo que também me tomou algum tempo para notar -- eu notei "sozinho" quando li que a preposição ex sofria o mesmo tipo de alteração [apesar de haver exceções]).
Na hora, minha suposição foi a seguinte: que adolescere viria de ad + dolescere. Questão é que eu tinha já em mente a idéia de que todos os ecer do português são criação "mais nova" vinda do latim vulgar e ausentes no latim clássico (sim, é verdade, estava ignorando o sc ali). Um exemplo seria
oboedir --> oboedecere --> obedecer
Porque eu supunha que ecer/escer fossem invenções do povo (o latim vulgar é o latim "que o povo falava" -- porque vulgus é povo em latim, anyways), eu passei a imaginar a possibilidade de dolescere significar dolere. E dolere significa doer em português, e então tudo me pareceu fazer muito sentido: o adultus seria uma pessoa sofrida e, portanto, já digna do status de "completa" na sociedade.
Mas, bem, sim, eu estava errado. Acontece que na verdade adolescere vem de ad + alescere, onde alescere significa "começar a alimentar" (o uso é meio estranho: apesar de alescere ser usado de forma ativa, ele tem um significado na verdade passivo. Assim, na verdade, alescere significaria "começar a ser alimentado").
Tá... mas aí o Wiktionary dizia algo bem legal sobre alescere:
Etymology
Inchoative or inceptive form from alō (“foster”), + inceptive suffix -ēscō.(forma Incoativa ou inceptiva de alō (“eu alimento”), + sufixo inceptivo -ēscō.)
No caso, alere é o verbo alimentar (daonde vem aluno, alimento, ...). Eu fui atrás do "sufixo inceptivo -esco" e, quem diria, ele era um sufixo produtivo no latim que indicava o aspecto "incoativo" ou "inceptivo/incetivo" (eu gosto de traduzir como incetivo porque foi-se o tempo em que as palavras guardavam esses p mudos no português), que, no caso, indicava "início de". Assim, em latim, se eu quisesse dizer que eu "ía começar a fazer tal coisa", me bastava adicionar um -sc- e tava feito o carreto \o/
O que eu achei legal disso é que aquela minha suposição de que ecer era coisa de latim vulgar caiu por terra / foi por água abaixo. Um exemplo é a palavra aparecer (que tem aparente [e não aparecente] como particípio presente):
Etymology
From Old Portuguese aparecer, from Late Latin appārēscere, present active infinitive of appārēscō (“begin to appear”), from Latin appareō.(do Português Antigo aparecer, do Latim Tardio [tardio?] appārēscere, infinitivo presente ativo de appārēscō ("começo a aparecer"), do Latim appareō.)
Prevérbios
O leitor astuto deve ter notado que o o em adolescere não aparece na construção ad + alescere. Tendo clicado na palavra inceptive no Wiktionary, notei sua etimologia:Etymology
From the French inceptif, from the Latin inceptīvus, from incipiō (“I begin”).(do Francês French inceptif, do Latim inceptīvus, de incipiō (“eu começo”).)
Cliquei na etimologia de incipio e descobri que vem de in + capio. Como assim? O verbo não era incipio? Daonde saiu aquele a em capio?
[aliás, diga-se de passagem, o particípio passado de incipio é inceptus, de onde vem a palavra inception, no inglês xP]
Eu não tenho muito para explicar aqui, mas a moral é que essa parte da postagem foi feita só para eu pôr esse link aqui (do Elmord's Magic Valley), onde o autor descreve sobre a existência de prevérbios e de algumas mudanças vocálicas quando a preposição é "acoplada" ao verbo.
No mais, outros exemplos incluem incidir, que é derivada de in + cadere (onde cadere significa cair -- e é daonde veio a expressão "estrela cadente" [i.e., estrela que cai]); e a oposição placere (gostar) vs. displicere (não gostar).
Infinitivo Futuro Passivo
Na minha busca por informações sobre "incoativo", acabou me chamando a atenção como os infinitivos futuros passivos são formados. Normalmente eles são compostos por dois verbos: o verbo "principal" em sua versão "supino" + o verbo eo (que significa ir) no infinitivo presente passivo (i.e., iri).Assim, o infinitivo "ir ser cantado" é conjugado como cantatum iri.
Pra mim isso é interessante porque me mostra como há 2000 já se usava o verbo "ir" para marcar o futuro (como fazemos hoje -- sim, de forma diferente, mas enfim).
Aspecto Frequentivo
Por fim, ao procurar por mais informações sobre as coisas que escrevi logo aqui em cima, acabei descobrindo que a palavra cantare é proveniente da flexão do verbo canere (cantar) no aspecto frequentivo. Assim, da mesma forma que se usa -sc- para indicar "início de", se usam os sufixos -tāre/-sāre, -itāre e -titāre/-sitāre para indicar "feito com frequência".A página da Wikipedia sobre o assunto dá até vários exemplos de verbos que se usam hoje e que são provenientes do uso dessa regra.
Enfim... isso cobre várias abas que deixei abertas desde ontem sobre vários assuntos. Tomara que isso crie pelo menos algum interesse no leitor sobre essa língua que pra mim tem trazido muita diversão.
R$
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